Um freezer da boate Kiss salvou a vida de Ingrid Goldani, 20 anos,
estudante do quinto semestre de enfermagem da UFSM. A jovem trabalhava
no bar da casa noturna no momento em que o local foi atingido por um
incêndio, no último domingo (27), que deixou 235 mortos. Nascida em Santa Maria, Ingrid teve alta do CTI e segue internada no Hospital Conceição, em Porto Alegre.
No hospital, Ingrid gosta de checar as redes
sociais pelo celular (Foto: Luiza Carneiro/G1)
sociais pelo celular (Foto: Luiza Carneiro/G1)
Ingrid trabalhava atrás do balcão do bar e demorou para perceber o que
estava acontecendo. Quando notou o fogo, o ambiente já estava tomado
pela fumaça. "Quando ela se sentiu mal e viu que não conseguiria mais
respirar, ela contou que abriu o freezer, colocou a cabeça dentro e
puxou o ar puro", disse o pai Flavio Goldani, gerente de manutenção.
O irmão de Ingrid, Fábio, também estava na boate, mas perto da porta e conseguiu escapar ileso.
Quando recuperou o fôlego, a jovem contou para a família que pulou o
balcão do bar, mas caiu e acabou pisoteada por algumas pessoas. "Um cara
viu que ela estava caída e a pegou no colo para levar para fora. Nisso,
meu filho tinha se dado conta que a irmã ainda estava dentro da boate",
afirmou Flávio.
Quatro dias após o incêndio na boate Kiss, de acordo com relatos de
sobreviventes e testemunhas, e das informações divulgadas até o momento
por investigadores:
- O vocalista segurou um artefato pirotécnico aceso.- Era comum a utilização de fogos pelo grupo.
- A banda comprou um sinalizador proibido.
- O extintor de incêndio não funcionou.
- Havia mais público do que a capacidade.
- A boate tinha apenas um acesso para a rua.
- O alvará fornecido pelos Bombeiros estava vencido.
- Mais de 180 corpos foram retirados dos banheiros.
- 90% das vítimas fatais tiveram asfixia mecânica.
- Equipamentos de gravação estavam no conserto.
Prisões
Quatro pessoas foram presas na segunda por conta do incêndio: o dono da boate, Elissandro Calegaro Spohr; o sócio, Mauro Hofffmann; o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo Santos; e um funcionário do grupo, Luciano Augusto Bonilha Leão, responsável pela segurança e outros serviços.
Investigação
O delegado Marcos Vianna, responsável pelo inquérito do incêndio na boate Kiss, disse ao G1 na terça-feira (29) que uma soma de quatro fatores
contribuiu para a tragédia ter acabado com tantos mortos:
1) o fato de a boate ter só uma saída e a porta ser de tamanho reduzido;
2) o uso de um artefato sinalizador em um local fechado;
3) o excesso de pessoas no local; e
4) a espuma usada no revestimento, que pode não ter sido a mais indicada e ter influenciado na formação de gás tóxico.
1) o fato de a boate ter só uma saída e a porta ser de tamanho reduzido;
2) o uso de um artefato sinalizador em um local fechado;
3) o excesso de pessoas no local; e
4) a espuma usada no revestimento, que pode não ter sido a mais indicada e ter influenciado na formação de gás tóxico.
O delegado regional de Santa Maria, Marcelo Arigony, afirmou também na
terça que a Polícia Civil tem "diversos indicativos" de que a boate
estava irregular e não podia estar funcionando.
"Se a boate estivesse regular, não teria havido quase 240 mortes",
disse em entrevista. "Mas isso ainda é preliminar e precisa ser
corroborado pelos depoimentos das testemunhas e os laudos periciais",
completou.
Arigony disse ainda que a banda Gurizada Fandangueira utilizou um
sinalizador mais barato, próprio para ambientes abertos e que não deveria ser usado durante show em local fechado.
"O sinalizador para ambiente aberto custava R$ 2,50 a unidade e, para
ambiente fechado, R$ 70. Eles sabiam disso, usaram este modelo para
economizar. Usaram o equipamento para ambiente aberto porque era mais
barato”, disse o delegado.
O vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo Santos, admitiu em seu depoimento à Polícia Civil que segurou um sinalizador aceso
durante o show, de acordo com o promotor criminal Joel Oliveira Dutra. O
músico disse, no entanto, que não acredita que as faíscas do artefato
tenham provocado o incêndio. Ele afirmou que já havia manipulado esse
tipo de artefato por diversas vezes em outras apresentações.
A boate Kiss desrespeitou pelo menos dois artigos de leis estadual e municipal
no que diz respeito ao plano de prevenção contra incêndio. Tanto a
legislação do Rio Grande do Sul quanto a de Santa Maria listam
exigências não cumpridas pela casa noturna, como a instalação de uma
segunda porta, de emergência. A boate situada na Rua dos Andradas tinha
apenas uma, por onde o público entrava e saía. Outra medida que não foi
cumprida na estrutura da boate diz respeito ao tipo de revestimento
utilizado como isolamento acústico.
A Brigada Militar informou nesta quarta que a boate não estava em desacordo
com normas de prevenção contra incêndios em relação ao número de
saídas. Segundo interpretação da lei, o local atendia as normas ao
possuir duas saídas no salão principal. Mas as portas, no entanto, não
davam para a rua, e sim para um hall. Este sim dava para a rua através
de uma só porta. "Foi um ato possível que o engenheiro conseguiu
colocar", disse o tenente coronel Adriano Krukoski, comandante do Corpo
de Bombeiros de Porto Alegre.
Jader Marques, advogado de Elissandro Spohr, um dos sócios da boate, disse que a casa noturna estava em "plenas condições" de receber a festa.
Ele falou sobre documentação da casa, segurança, lotação, e disse que a
banda Gurizada Fandangueira não avisou que usaria sinalizadores naquela
noite. O advogado ainda afirmou que o Ministério Público vistoriou o
local "diversas vezes".
A Prefeitura de Santa Maria se eximiu de responsabilidade
pelo incêndio e entregou alvará para a polícia que mostra data de
validade de inspeção para prevenção de incêndio, feita pelo Corpo de
Bombeiros. A prefeitura afirma que a sua responsabilidade era apenas
sobre o alvará de localização, que é válido com a vistoria do ano
corrente. O documento informa que a vistoria foi feita em 19 de abril de
2012.
O chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional do Corpo de Bombeiros, major Gerson Pereira, disse na quarta que a casa noturna tinha todas as exigências estabelecidas
pela lei vigente no Brasil. "Quem falhou, que assuma a sua
responsabilidade. Nós fizemos tudo o que estava ao nosso alcance e não
vou entrar em jogo de empurra-empurra", afirmou.
O Ministério Público do Rio Grande do Sul abriu um inquérito civil na terça para investigar a possibilidade de improbidade administrativa
por parte de integrantes da Prefeitura de Santa Maria, do Corpo de
Bombeiros e de outros órgãos públicos por terem permitido que a boate
Kiss continuasse funcionando mesmo com as licenças de operação e
sanitária vencidas.
Alccy Marthins