O que é necessário para se tornar um mito? Se você for mulher, a fórmula é simples. Suas melhores apostas são os três Ds: delusão (Joana D’Arc), deficiência (Helen Keller), destruição (Sylvia Plath). Você pode conseguir pontos extras com uma morte cruel, súbita ou surpreendente, como demonstram Evita, Amelia ou Diana. No topo da lista das personalidades mais autodestrutivas de todos os tempos vem, é claro, Cleópatra VII, cuja busca pelo túmulo começará em breve, num monte egípcio a oeste de Alexandria.
Rainha Cleópatra VII do Egito
Foto: MGM
Cleópatra morreu há 2.039 anos, com 39 anos de idade. Antes de se transformar em máquina de caça-níqueis, videogame, marca de cigarro, camisinha, caricatura, clichê ou sinônimo de Elizabeth Taylor, antes de reencarnar nas obras de Shakespeare, Dryden ou Shaw, ela foi uma rainha egípcia de verdade. Governou por 21 anos, a maior parte do tempo sozinha, o que quer dizer que ela era essencialmente um rei feminino, uma incongruência que provoca o tipo de reação antes reservada aos homens travestidos.
Do ponto de vista dela, não havia nada de estranho com o arranjo. Cleópatra certamente tinha mais modelos femininos poderosos do que qualquer outra mulher na história. Elas não eram exatamente estandartes da virtude, mas articuladoras políticas argutas. Suas antecessoras foram as rainhas macedônias rancorosas e intrusivas que rotineiramente envenenavam irmãos e enviavam exércitos contra seus filhos. A tataravó de Cleópatra declarou uma guerra civil contra seus pais, e outra contra seus filhos. Essas mulheres foram criadas para governar.
Cleópatra teve um filho com Júlio César. Depois de sua morte, ela teve mais três – dois filhos e uma filha – com seu protegido, Marco Antônio. A maternidade confirmou seu poder sobre o trono. Ela foi em parte o reverso de Henrique 8º; ela também precisava de um herdeiro homem, mas teve mais sucesso ao consegui-lo.
É quase certo que Marco Antônio e Júlio César representam toda a extensão da história sexual de Cleópatra. Ela era autoconfiante, engenhosa e destemida, e para sua época e lugar era extremamente bem comportada. Tendo herdado um país em declínio, ela o governou com habilidade num período de seca, fome, peste e guerra.
Entretanto, o que pode ser dito de bom de uma mulher que dormia com dois dos homens mais poderosos de sua época? Os pais dos filhos de Cleópatra eram homens de um apetite sexual voraz e notório. Cleópatra é lembrada na história como uma sedutora implacável. Ela é a garota má original, uma Monica Lewinsky do mundo antigo. E tudo porque ela aparece em uma das mais perigosas intercessões da história, a que existe entre as mulheres e o poder.
Ela reina eternamente sobre a disputa entre promiscuidade e virilidade, a floresta de conotações que separam a “aventureira” do “aventureiro”. No mundo antigo, também, as mulheres faziam intriga enquanto os homens faziam estratégia. E o poder feminino se afirmava com regularidade, de uma forma mais velada do que na época grega. Nos contratos de casamento do primeiro século antes de Cristo, a mulher prometia ser fiel e dedicada – e não colocar poções de amor na comida do marido. As mulheres inteligentes, já alertava Eurípedes, são mulheres perigosas.
Assumindo que a dupla medida sobreviveu pelo menos 2 mil anos desde Cleópatra, o que estamos fazendo hoje num monte egípcio, sob as ruínas do templo de Taposiris Magna? “Esta pode ser a descoberta mais importante do século 21″, diz o diretor do patrimônio egípcio, Zahi Hawass, sobre a escavação. Com certeza será um alívio riscar Cleópatra da lista de coisas que perdemos, ou que acreditamos ter perdido: Atlântida, Jamestown, uma tribo inteira de Israel, boas maneiras, Jimmy Hoffa.
Se encontrarmos o túmulo de Cleópatra – e certamente encontraremos algo relevante, uma vez que Hawass parece determinado a fazer uma descoberta à altura de Tutancâmon, em 1992 – poderemos até solucionar o mistério da morte de Cleópatra. Com certeza não haverá uma víbora preservada ao lado de sua múmia. Isso foi provavelmente um acréscimo à história. Não é difícil de imaginar o que alguém quer dizer quando junta uma mulher com uma cobra.
Entretanto, talvez possamos determinar se Cleópatra cometeu suicídio ou foi de fato assassinada. Enquanto prisioneira, ela era um constrangimento para os romanos, que não sabiam como triunfar com alarde, e com certa compaixão, sobre uma mulher. Pode ser que eles tenham-na matado antes. Em grande parte, foram os inimigos de Cleópatra que garantiram nosso fascínio em relação a ela. Foi a guerra civil de Roma que assegurou a sua imortalidade.
E foi Otaviano, seu inimigo e futuro Augusto César, que estabeleceu sua aura de femme fatale. Ele também pode ter sido o responsável pela versão da Classic Comics de uma rainha pervertida e ambígua, abrindo o caminho para Joseph L. Mankiewicz. Mas nesse processo, ele superdimensionou Cleópatra a proporções hiperbólicas – para fazer o mesmo com sua própria vitória. A história de Cleópatra difere da maioria das histórias sobre mulheres, porque os homens que a contam, por seus próprios motivos, engrandecem e não diminuem o papel dela.
Otaviano quase não precisava aumentar a história. Ela era uma mulher da realeza que por fim, pode-se dizer, morreu por amor. As tragédias românticas não ficam melhores do que isso, o que explica porque Shakespeare teve dificuldade em melhorar Plutarco. E Cleópatra coloca um rótulo antigo em algo que sempre soubemos existir: a sexualidade feminina exacerbada. Eis novamente aquela poção do amor.
Não é que ela tenha batido a cabeça num teto de vidro, mas tropeçou no alçapão de entrada, na armadilha que diminui as mulheres através da sexualidade. Como escreveu Margaret Atwood sobre Jezebel, “a bagagem sexual que acumulada em torno dessa figura é impressionante, uma vez que ela não fez nada nem remotamente sexual na história original, exceto usar maquiagem”. No caso de Cleópatra, a ausência total de verdade assegurou o mito. Quando os fatos são escassos, os mitos invadem a história, como erva daninha.
Seria um alívio resolver de uma vez por todas a dúvida excruciante sobre a beleza de Cleópatra, apesar de a resposta não afetar praticamente nada. Mesmo que ela tivesse todas as armas estéticas em seu arsenal, já sabemos quais ela usou com tanta destreza. “Era impossível conversar com ela sem ser imediatamente cativado”, diz uma de nossas duas melhores fontes.
Sua voz era aveludada; sua conversa estimulante; seus poderes de persuasão inigualáveis; sua presença um evento, diz o outro. Provavelmente nenhum desses atributos poderá ser extraído da rocha egípcia para fazer uma turnê internacional. Cleópatra serviu como uma arma eficiente que Otaviano usou para unir-se a Marco Antônio, numa guerra civil particularmente violenta.
Foi sua fraqueza pela estrangeira sedutora que corrompeu e arruinou Antônio. Descobriremos que ele dividiu o túmulo com Cleópatra, conforme dizem os relatos antigos? Afinal, foi o pedido – real ou inventado por Otaviano – de ser enterrado ao lado dela que custou Roma a Marco Antônio. Dizem que Cleópatra o enterrou com suas próprias mãos, febrilmente, com suntuosidade e honrarias. (Ela tentou deixar de comer até a morte na época.) Entretanto, a busca pelo túmulo dele não é assunto para as manchetes. Marco Antonio é um tanto figurante da história alheia.
A busca é, além disso, atual. A classicista de Cambridge Mary Beard diz que durante anos o Santo Graal dos arqueólogos foi o túmulo (ainda perdido) de Alexandre, o Grande. Mas não estamos mais no mercado em busca de um homem branco imperialista. Apesar de essa escavação não solucionar nenhuma das grandes questões, ela poderia, diz Beard, possivelmente oferecer pistas sobre a etnia de Cleópatra.
Ela era uma macedônia pura, ou tinha descendência africana? (Minha aposta é de que ela era macedônia com, talvez, um pouco de sangue persa.) De fato a questão da ancestralidade mista parece ser o assunto da vez. Há um mês, cientistas britânicos sugeriram que haviam solucionado definitivamente a questão, produzindo simulações computadorizadas da irmã de Cleópatra com base num crânio encontrado na Turquia.
Aqui entramos num exercício familiar: Cleópatra também passou sua vida tentando reconciliar Ocidente e Oriente, com tão pouco sucesso quanto conseguimos hoje. Um romano não conseguia pensar além de um Ocidente civilizado e virtuoso e um Oriente opulente e decadente. Ele era incapaz de vislumbrar além do exótico e do erótico.
O Oriente era, por definição, atraente e voluptuoso – como uma mulher, de fato. Pense na dança árabe do maravilhoso segundo ato do balé “Quebra-Nozes” de Balanchine. Ela é uma presença ardente, intoxicante, muito potente para qualquer parceiro, sem nenhuma importância para a história, que sempre suspeitei estar lá somente para acordar os pais da platéia.
É claro que temos intenção de solucionar os enigmas. Ansiamos pela caixa preta da história. De certa forma, também queremos a confirmação de que vivemos no mesmo planeta que a lenda que inspirou dois milênios de prosa ardente, de que aquilo que parece mito foi história verdadeira. Temos sede de certezas.
Queremos ver e tocar o mito em todo o seu cintilante esplendor, esquecendo-nos de que ao fazer isso ele volta – pelo toque de Midas ao reverso – para a escória da história. Se encontrarmos Cleópatra, e se pudermos lhe dar um rosto, prometemos desistir de Elizabeth Taylor de uma vez por todas?Escolheremos a mulher ou o mito? Será que algo se perderá quando ela for encontrada? Otaviano tinha seus planos, nós temos os nossos.
Não importa o que as tumbas de Taposiris nos reservam, é pouco provável que ofereçam uma resposta para a misteriosa questão das mulheres e o poder. Para isso, teremos de escavar em outros lugares. E pode levar um pouco mais de tempo. As Cleópatras de hoje não tem mistério muito menos honra.
Alccy Martins
@alcy_martins